quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Fazer mundos

Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, Lisboa, Edições Asa, 1995, pp. 44-47:
«...Muito da feitura do mundo, mas de modo algum tudo, consiste, muitas vezes de uma forma combinada, em separar e reunir: por um lado, em dividir totalidades em partes e em separar espécies em subespécies, analisar complexos em características componentes, traçar distinções; por outro lado, em compor totalidades e espécies a partir de partes, membros e subclasses, combinar características em complexos, e fazer ligações. Tal composição ou decomposição é normalmente efectuada, ajudada ou consolidada através da aplicação de etiquetas: nomes, predicados, gestos, imagens, etc. Assim, por exemplo, eventos temporalmente diversos são apresentados juntamente sob um nome próprio ou identificados como constituindo «um objecto» ou «uma pessoa»; ou a neve é separada em vários materiais nos termos do vocabulário esquimó. A transferência metafórica, por exemplo, quando predicados de paladar são aplicados a sons, pode efectuar uma dupla reorganização, tanto reordenando o novo domínio da aplicação como relacionando-o com o antigo (LA: II). A identificação assenta sobre a organização em entidades e espécies. A resposta à questão «É ou não o mesmo?» deve sempre ser «O mesmo quê?»l[1]. Diferentes coisas podem ser o mesmo tal-e-tal: aquilo para que apontamos ou que indicamos, verbalmente ou de outra maneira, podem ser eventos diferentes mas o mesmo objecto, cidades diferentes mas o mesmo estado, membros diferentes mas o mesmo clube ou clubes diferentes mas os mesmos membros, jogadas diferentes mas o mesmo jogo de basebol. «A bola-em-jogo» de um único jogo pode ser composta de segmentos temporais de uma dúzia ou mais de bolas de basebol. O psicólogo que pede à criança para julgar a constância quando um recipiente é vazado noutro deve ter o cuidado de considerar que constância está em questão — constância de volume, profundidade, forma ou espécie de material, etc.[2] Identidade ou constância num mundo é identidade respeitando ao que está no interior desse mundo enquanto organizado.
Entidades heterogéneas entrecortadas umas nas outras em padrões complicados podem pertencer ao mesmo mundo. Não fazemos um mundo novo de cada vez que separamos coisas ou as juntamos doutro modo; mas os mundos podem diferir pelo
Facto de nem tudo o que pertence a um pertencer ao outro. O mundo do esquimó, que não apreendeu o conceito abrangente de neve, difere não apenas do mundo do samoano mas também do mundo do habitante da Nova Inglaterra, que não apreendeu as distinções do esquimó. Noutros casos, os mundos diferem em resposta a questões teóricas mais do que a necessidades práticas. Um mundo com pontos como elementos não pode ser um mundo whiteheadiano tendo os pontos como determinadas classes de volumes encaixando-se, ou tendo pontos como determinados pares de linhas intersectando-se ou como determinadas tríades de planos intersectando-se. O facto de os pontos do nosso mundo quotidiano poderem ser igualmente bem definidos de qualquer destes modos não significa que um ponto possa ser identificado em qualquer mundo com um encaixe de volumes, um par de linhas e uma tríade de planos; porque todos estes são diferentes uns dos outros. Por outro lado, o mundo de um sistema, assumindo os fenómenos concretos mínimos como atómicos, não pode admitir qualidades como partes atómicas desses concreta..
[3]
A repetição, tal como a identificação, é relativa à organização. Um mundo pode ser ingovernavelmente heterogéneo ou insuportavelmente monótono, segundo o modo como os eventos sejam organizados em espécies. O facto de as experiências de hoje repetirem ou não as de ontem, por mais que os dois eventos possam diferir, depende de elas testarem uma hipótese comum; como o disse Sir George Thomson:
Haverá sempre algo diferente.... O que sucede quando diz que repete uma experiência é que repete todas as características de uma experiência que uma teoria determina serem relevantes. Por outras palavras, repete a experiência como um exemplo da teoria.
[4]
Igualmente, duas interpretações musicais que diferem drasticamente são, não obstante, interpretações da mesma obra se se ajustam à mesma partitura. O sistema de notação distingue as características constitutivas das características contingentes, seleccionando assim as espécies de interpretação que se consideram como obras (LA, pp. 115-130). E as coisas «continuam da mesma maneira» ou não, segundo aquilo que se considera como a mesma maneira; digo «agora posso continuar»,[5] no sentido de Wittgenstein, quando encontrei um padrão familiar, ou a sua variação tolerável, que se adequa aos casos dados e vai mais longe que eles. A indução requer que se tomem algumas classes com exclusão de outras como sendo as espécies relevantes. Apenas assim, por exemplo, as nossas observações de esmeraldas mostram alguma regularidade e confirmam que todas as esmeraldas são verdes e não que todas as esmeraldas são verduis (i. é. examinadas antes de uma certa data e verdes, ou não examinadas antes dessa data e azuis — FFF, pp. 72-80). A uniformidade da natureza que nos maravilha ou a precaridade contra a qual protestamos pertencem a um mundo da nossa própria feitura.
Nestes últimos casos, os mundos diferem nas espécies relevantes que compreendem. Digo «relevantes» em vez de «naturais» por duas razões: primeiro, «natural» é um termo inadequado para incluir não apenas espécies biológicas mas espécies artificiais como obras musicais, experiências psicológicas e tipos de maquinaria; e segundo, «natural» sugere algum tipo de prioridade categorial ou psicológica, ao passo que as espécies em questão são antes habituais, tradicionais ou delineadas para um novo propósito...»
Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, Lisboa, Edições Asa, 1995.

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[1] Isto não requer, como por vezes é suposto, nenhuma modificação da fórmula de aiz para a identidade, mas recorda-nos meramente que a resposta à questão «Este: mesmo que aquele?» pode depender de o «este» e o «aquele» em questão se refe-i a coisa, evento, cor ou espécie, etc.
[2] VerBI,pp. 331-340.
[3] Ver também SÁ, pp. 3-22, 132-135, 142-145.
[4] Em «Some Thoughts on Scientific Method» (1963), in Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. 2 (Humanities Press, 1965), p. 85.
[5] A discussão do que isto significa ocupa muitas secções, mais ou menos da secção 142 em diante, das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein, traduzidas por G. E. M. Anscombe, (Blackwell, 1953); [tradução portuguesa de M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, (N. T.).] Não estou a sugerir que a resposta dada aqui é de Wittgenstein.