quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Alegoria da Caverna, de Platão

«Sócrates. — Agora, representa-te numa outra natureza, conforme é ou não é instruí­da pela educação, segundo o quadro que aqui está. Imagina homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, cuja entrada, aberta à luz, se estende em todo o comprimento da fachada; eles estão ali desde a sua infância, as pernas e o pescoço presos a correntes, de maneira que não podem mexer-se, nem ver mais longe do que diante deles; porque estas cadeias impedem-nos de virar a cabeça; a luz de uma fogueira acesa ao longe sobre uma colina brilha por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros, há uma estrada alta; ao longo dessa estrada, imagina um pequeno muro, igual às paredes que os titeriteiros montam entre eles e o público e por cima das quais mostram a sua arte.
Glauco — Eu vejo isso.
S. — Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam utensí­lios de toda a espécie, que ultrapassam a altura do muro, e figuras de homens e de animais, de pedra, de madeira, com toda a espécie de formas; e naturalmente entre estes carregadores que desfilam, uns falam, outros nada dizem.
G. — Eis um estranho quadro e estranhos prisioneiros.
S. — Eles parecem-se connosco. E em primeiro lugar, pensas que nesta situação eles vêem de si próprios e dos seus vizinhos outra coisa além das sombras projectadas pela fogueira na parte da caverna que lhes faz frente?
G. — Como é que poderia ser de outra forma se eles são obrigados durante toda a sua vida a ficar com a cabeça imóvel?
S. — E com os objectos que desfilam, não se passará o mesmo?
G. — Incontestavelmente.
S. — A partir daí, se pudessem conversar entre si, não achas que eles acreditariam estar a nomear os próprios objectos reais, ao nomearem as sombras que veriam?
G. — Necessariamente. ...]
S. — É indubitável que aos olhos desta gente, a realidade não poderá ser outra coisa além das sombras dos objectos manipulados.
G. — Exacto.
S. — Examina agora como reagiriam se os libertássemos das suas cadeias e os curásse­mos da sua ignorância, e as coisas se passassem naturalmente como se segue. Vamos soltar um desses prisioneiros, obrigá-lo a levantar-se subitamente, a virar o pescoço, a andar, a erguer o olhar na direcção da luz, todos estes movimentos o farão sofrer, e o encandeamento impedi-lo-á de olhar para os objectos cujas sombras via há pouco. Pergunto-te o que é que ele poderá responder, se lhe dissermos que há pouco ele apenas via nadas sem consistência, mas agora, mais perto da realidade e virado para os objectos mais reais, ele vê-os tal como eles são: se, finalmente, fazendo-o olhar para cada um dos objectos que desfilam diante dele, o obrigássemos à força de per­guntas a dizer o que é? Não achas que ficaria embaraçado, e os objectos que via há pouco vão parecer-lhe mais verdadeiros do que aqueles que lhe mostramos agora?
G. — Muito mais verdadeiros. [...]
S. — E se o tirássemos dali à força, se o obrigássemos a subir a ladeira rude e escarpa­da, e não o largássemos antes de o ter arrastado para fora à luz do sol, não achas que ele sofreria e revoltar-se-ia por ser tratado assim, e uma vez diante da luz, seria encandeado pelo seu brilho, e não poderia ver nenhum dos objectos que nós nome­amos agora verdadeiros?
G. -— Ele não poderia vê-los, pelo menos ao princípio.
S. — Ele deveria efecLi vá mente habituar-se, se quisesse ver o mundo superior [...]
Depois, penso eu, será sol [...] o próprio sol que ele poderá olhar e contemplar tal como é.
G. — Necessariamente. [...]
S. —Agora, é necessário, meu caro Glauco, aplicar exactamente esta imagem ao que nós dissemos mais acima: é necessário assimilar o mundo visível à estadia na prisão, e a luz da fogueira com a qual ela é iluminada ao efeito do sol; quanto à ladeira para o mundo superior da contemplação das suas maravilhas, vê aí a subida da alma para o mundo inteligível [...]. Nos últimos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, a qual apenas distinguimos dificilmente, mas não poderemos distingui-la sem concluir que ela é a causa universal de tudo o que há de bom e de belo; no mundo visível, foi ela quem criou a luz e o distribuidor da luz; e no mundo inteligível, é ela quem dispensa e procura a verdade e a inteligência.»
Platão, Republique (entre 385 e 370 a. C.), livro VII, 514-517 a.C, trad. É. Chambry, Col. «Méditations», Conlhier, Paris, 1966, pág. 216-219.

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